Em 2008, comemorou-se o tricentenário da Guerra dos
Emboabas. Um ano antes, a imprensa, fiel à cronologia mais tradicional,
apressou-se em celebrar a data, e um e outro artigo foi publicado, repisando os
velhos clichês sobre o evento, a exemplo do caráter nativista e a cobiça pelo
ouro como principal motor. A efeméride oferece uma boa oportunidade para se
refletir sobre a fortuna crítica do conflito, que, inexplicavelmente, permanece
pouco explorado pelos estudiosos. O enorme fascínio da Inconfidência Mineira
tendeu a ofuscar tudo à sua volta, transformando o século XVIII mineiro numa
crônica quase pacífica, ameaçada pela ousadia de Tiradentes, o mais legítimo
arauto da causa da Independência contra uma metrópole tirânica e espoliadora.
Em comparação com ela, a Guerra dos Emboabas parece perder seu vigor e sua
relevância histórica – e mesmo o fato de ter ocorrido nas origens da história
mineira, revestindo-a das dimensões de um evento fundador, foi considerado
antes uma fraqueza, uma vez que se confundia com a infância de um povo que só
alcançaria maturidade muito tempo depois.
Há quase dois séculos, a Guerra dos Emboabas integra o
repertório das chamadas revoltas nativistas, expressão que designa os
movimentos coloniais que tinham em sua origem o sentimento de amor à pátria e
que se opunham à opressão da metrópole. É bem conhecida a tradição da
historiografia oitocentista de conceber os movimentos políticos do período
colonial em função de um suposto ideal de libertação nacional, associado à
paulatina tomada de consciência em relação à metrópole, que desembocaria na
independência do Brasil. Sob essa perspectiva, as revoltas coloniais
constituiriam prefigurações de um acontecimento culminante que, completando os
elos de uma cadeia, dotava-as de sentido e lógica, inscrevendo-as numa única
totalidade. Ao lado de eventos como a Revolta de Beckmann, a Insurreição Pernambucana
e a Guerra dos Mascates, a Guerra dos Emboabas seria, assim, o despertar do
nativismo em solo mineiro, a pungente luta do colonial contra o metropolitano.
Problema para
historiadores
Mas, diferentemente das demais revoltas nativistas, nas
quais não há dificuldade para se identificar o grupo social imbuído de um
caráter autonomista ou nacionalista, a Guerra dos Emboabas impôs um problema
sério aos historiadores: seriam os paulistas ou os emboabas os verdadeiros
nativistas, os campeões da causa nacional? A questão dividiu a historiografia,
que se viu então mergulhada em longo e estéril debate sobre o caráter
ideológico do movimento. Naquele contexto, a investigação empírica estava fora
do horizonte dos estudos e grande parte do que se escreveu sobre o tema permaneceu
atrelado a um corpus documental bastante fragmentário e reduzido. A polêmica
historiográfica girava, então, em torno da interpretação das evidências e, à
exceção de Soares de Mello, nenhum historiador se aventurou em direção a novos
fundos documentais.
O certo é que as matrizes analíticas da Guerra dos Emboabas
haviam sido estabelecidas ainda no século XVIII, por autores como Rocha Pita,
Manuel da Fonseca, Pedro Taques Paes Leme e Cláudio Manuel da Costa. Estes
foram os primeiros a tratar do tema, a partir de uma perspectiva mais ou menos
histórica, adotando, em razão da proximidade dos eventos que relatavam, a
versão de um ou outro partido em conflito. A obra de Rocha Pita é, sem dúvida,
a principal matriz dos estudos de orientação pró-emboaba: entusiasta da colonização
portuguesa, seu autor não nutria simpatia pelos homens da vila de São Paulo,
que reputava tiranos, cruéis e bárbaros, contra os quais haviam se levantado
legitimamente os emboabas liderados por Nunes Viana. Tanto a descrição quanto a
interpretação que fez do levante seguem à risca a versão forjada pelo partido
emboaba, coincidindo com ela em praticamente todos os aspectos, inclusive na
ênfase dada aos males provocados pela descoberta das minas dos Cataguases, as
quais haviam ameaçado levar o Brasil até a sua “última ruína”.
Outras leituras
Apesar do projeto de escrever uma “verdadeira notícia do
levantamento que houvera nas Minas Gerais”, Pedro Taques deixou apenas umas
poucas páginas, espalhadas nos verbetes da Nobiliarquia paulistana, histórica e
genealógica. Para ele, a origem das dissensões entre paulistas e emboabas
residia naquela “néscia e abominável desafeição introduzida nos europeus
portugueses contra os paulistas...”. Das suas páginas, os paulistas, “que em número
eram menos poderosos que os da Europa”, emergem como vítimas da tirania dos
reinóis liderados por Nunes Viana, apresentado como “alentado, porém tirano, com
maior crueldade que valor, com que havia feito na sua pátria muitos homicídios
e insolências grandes”. Fiel à memória construída pelos paulistas sobre os seus
feitos nas Minas, Pedro Taques transformou-os em protagonistas por excelência
da saga dos descobrimentos: valorosos e intrépidos, descendentes das mais finas
linhagens ibéricas, haviam se lançado aos sertões indevassados, conquistando-os
duramente ao gentio bravio.
A matriz consagrada por esse ilustre filho do clã Leme, que
fizera tantos descobridores notáveis, como Fernão Dias Pais e Garcia Rodrigues
Pais, seria apropriada, com alguns retoques, por Cláudio Manuel da Costa, no
poema Vila Rica e em seu Fundamento histórico, este último considerado o
“primeiro marco do que se pode chamar, propriamente, de memorialística
histórica das Minas setecentistas”. Refutando a versão emboaba sobre a rebeldia
inata dos paulistas, mais especificamente a interpretação de Rocha Pita, o
poeta resgata a epopeia dos homens do Planalto de Piratininga, revestindo-a com
caracteres grandiloquentes e monumentais e descrevendo seus protagonistas como
“os que nesta América têm dado ao mundo as maiores provas de obediência,
fidelidade e zelo pelo seu rei, pela sua pátria e pelo seu reino”.
A apropriação acrítica dessas matrizes setecentistas resultou
numa historiografia altamente ideologizada e marcadamente descritiva,
desprovida de um esforço de reflexão mais amplo e escorada em adjetivos
exaltados. Nos séculos XIX e XX, a historiografia de orientação paulista,
engajada na construção do mito do paulista como bandeirante, derivada
diretamente das obras de Pedro Taques e frei Gaspar da Madre de Deus, retomaria
a Guerra dos Emboabas concebendo-a como a luta aguerrida dos homens do Planalto
em defesa dos interesses da pátria, ameaçados pelos reinóis.
O recurso a um corpus documental limitado e a filiação às
vertentes interpretativas do século XVIII resultaram numa historiografia pouco
original, em que as obras tendem a se repetir, cujo principal ponto de partida
reside na indagação sobre a legitimidade histórica das reivindicações de
paulistas e forasteiros. A polêmica sobre o nativismo conviveu lado a lado com interpretações
de orientação marxista, marcadas pela tentativa de caracterizar o conflito como
uma luta de classes entre mineradores e mercadores. As análises, em sua quase
totalidade, voltaram-se para uma abordagem eminentemente econômica – da qual
derivaria a questão do nativismo, como instrumento contra a opressão –, de modo
a articular a disputa com os interesses materiais mais imediatos dos grupos
envolvidos.
Tentativa pioneira
Alguns trabalhos merecem atenção especial, por terem se
tornado referência obrigatória para os estudiosos do tema, fosse pela
apresentação de fontes inéditas, fosse pelo escopo de sua abordagem
teórico-metodológica. É o caso da História antiga de Minas Gerais, de autoria
de Diogo de Vasconcelos, publicada em 1901. Com justiça, Francisco Iglésias
observou que a obra é uma “tentativa pioneira de estudo de conjunto dos primeiros
anos de Minas”, sistematizando o que “andava disperso em livros, crônicas ou
memórias, nas tradições populares”.O que surpreende no trabalho de Vasconcelos,
para além da qualidade da narrativa e da grande erudição, é que pela primeira
vez um historiador espanou a poeira dos papéis do Arquivo Público Mineiro,
jogando luzes sobre o vasto continente – até então indevassado – da história
mineira. Nesse sentido, Diogo de Vasconcelos bem merece o título de primeiro
grande historiador das Minas Gerais, autor de uma obra de qualidade inestimável,
apesar da sua aparente falta de rigor e da descontinuidade de sua produção.
A descrição que Vasconcelos faz da Guerra dos Emboabas é,
sem dúvida, um dos pontos altos do livro, e ele se revela um apaixonado pelo
tema, dedicando-lhe páginas verdadeiramente inspiradas. A análise principia com
a constatação do estado de isolamento e dispersão dos núcleos populacionais,
dominados por donatários autônomos, que se entregavam às rivalidades atávicas e
aos ódios separatistas. Segundo ele, “tantas pátrias assim se criaram, quantas
as colônias”. Tão inevitáveis eram as dissensões pela posse dos terrenos que,
se não fossem entre paulistas e forasteiros, certamente seriam entre os
primeiros e os taubateanos. Perspicaz, Vasconcelos remonta ao processo de
formação de Portugal o estado de isolamento, também “formado de senhorios e
conselhos autônomos, cada qual trazendo a sua história particular das
vicissitudes da Península”, do que resultou a força dos poderes locais, que
pululavam fora da órbita em que gravitava o centro político do império – este
também dominado por particularismos de toda sorte. Para ele, não se tratava
ainda do conceito de pátria como um todo – tal como se entendia à época –, mas
dos particularismos característicos de uma colônia em que o poder central
estava distante e mal podia alcançar todos os rincões, dando lugar ao nativismo
partilhado tanto por paulistas quanto por emboabas.
Imbuído das ideias de seu tempo sobre os paulistas, considerou-os
“os nossos argonautas” e posicionou-se mesmo em favor deles. Escrevendo antes
da obra de
Alcântara Machado, que pintaria um cenário de pobreza e rusticidade,
Vasconcelos criou uma vila de São Paulo mítica, herdeira das formulações
nobiliárquicas de Pedro Taques. Fascinava-o na São Paulo de Piratininga “o
esplendor do culto feito pelos padres da Companhia, as famílias nobres e principais
que ali moravam, as artes que floresciam, o luxo dos potentados, as alegrias da
liberdade”.
Apesar de sua simpatia pelos paulistas, justificou a
aclamação de Manuel Nunes Viana e refutou a interpretação tradicional da guerra
como uma “revolução bárbara”, considerando-a a solução necessária num momento
de crise: “[...] ela se justifica e se legitima a nossos olhos, como fenômeno
reacionário e próprio das situações apertadas, quando a sociedade, conservando ainda
instintos do direito, quer-se salvar do seu total e afrontoso aniquilamento”.
Para ele:
Manuel Nunes Viana, obrigado a
tomar as armas, defendia a liberdade e a vida de seus compatriotas e bem sabia
que sorte o esperava, quer como vencedor, quer como vencido, em poder do
Soberano. Seus bens, sua vida, sua tranqüilidade, tudo expôs aos azares, como simplesmente
era ocasional a sua autoridade.
A sagração do ditador, que situou no arraial da Cachoeira, quando
teria sido revestido da espada e das insígnias do governo, foi considerada por
ele um “fato singular e extraordinário”, que dava aos princípios das Minas “o prisma
dos impérios romanescos”.
Suas páginas sobre a Guerra dos Emboabas surpreendem,
contudo, pelo tom apaixonado com que evoca o quadro vívido e fascinante dos
acontecimentos, narrados num ritmo trepidante e protagonizados por agentes
históricos vigorosos e densos. A batalha da Cachoeira é particularmente
reveladora do estilo do autor:
[...] os paulistas, acudindo ao
novo perigo, enfraqueceram a linha do Jardim, e as hostes o ditador, por ali
penetrando, vieram travar a batalha no centro do arraial, cujo recinto se converteu
num circo de feras, tal o furor dos combatentes. Pelejou-se peito a peito.
Como muitos em seu tempo, Vasconcelos não tinha o hábito de
citar fontes e arquivos, apesar de sua obra basear-se em vasta pesquisa
documental. Mas, mesmo um autor como Francisco Iglésias, que o reputa um historiador
rigoroso e cuidadoso, admite que a narrativa sobre a Guerra dos Emboabas, pelo
seu tom romanesco e exaltado, beira a ficção. Alguns indícios parecem indicar que
ele tenha se inspirado em um livro manuscrito escrito no século XIX que se
perdeu, restando apenas alguns fragmentos dele, compilados pelo historiador
João Batista Costa, cuja semelhança com a sua narrativa é espantosa. De qualquer
modo, depois de Rocha Pita, a narrativa de Vasconcelos sobre a Guerra dos
Emboabas tornou-se a referência mais importante dos estudiosos, citado muitas vezes
com foros de fonte histórica, sem que se procedesse a uma crítica mais
cuidadosa de suas afirmações.
Revolução nativista
Outra obra importante é de autoria de J. Soares de Mello,
para quem a Guerra dos Emboabas foi antes de tudo uma “revolução nativista”: o
“noviciado da liberdade para a terra de Santa Cruz”. Escrevendo em 1929, sob a
poderosa influência da onda pró-paulista que avassalava a historiografia
nacional, Soares de Mello fez a apologia dos homens do Planalto de Piratininga,
os legítimos representantes da nação brasileira, em oposição aos emboabas,
vistos como sinônimo de reinol e português. Para ele, “os reinóis, na colônia,
no interior do país, procediam incorretamente, criminosamente”. Interessados
apenas na conquista, descuidavam-se da colonização sistemática, e a causa
da revolta “é a mesma das
comoções intestinas de outros povos, causas velhas, e sempre novas, resumidas no
exagero da tributação”. O autor consegue ver um “ideal nacionalista”, em torno
do qual os paulistas, movidos pelo amor ao solo, expressariam o “ódio ao estrangeiro”.
Nesse sentido, a Guerra dos Emboabas “é a primeira repulsa ao português”. Em
vez de herói libertador, Manuel Nunes Viana, cuja origem portuguesa é
destacada, surge como o primeiro ditador da América, agregando à sua volta uma
“gente bronca e supersticiosa [que] cegamente o obedeceria, ainda nos caprichos
pequeninos de sertanejo empafioso”.
Entretanto, a grande novidade de Soares de Mello é o seu
esforço em garimpar novas fontes para a investigação, pois até então “nenhum
deles [historiadores da guerra] se decidiu a revolver os arquivos para reconstituí-la”.
Para o autor, sua obra vinha cobrir uma lacuna importante, denunciada havia
muito, pois que se limitavam os estudiosos a “narrar de ligeiro e, ainda assim,
“deturpando os fatos”. Mas o grande alvo de
Soares de Mello era a interpretação dada por Rocha Pita, em
sua História da América portuguesa, a quem acusava de propor uma abordagem
partidária dos reinóis e contrária aos paulistas, que teria contaminado os estudos
sobre o tema feitos até então. Pita, interessado em escrever uma história
apaixonada com o objetivo de conseguir os favores do rei, teria renunciado à pesquisa
documental, valendo-se apenas dos depoimentos e declarações de reinóis.
A partir de documentação inédita, proveniente do então fundo
do Arquivo de Marinha e Ultramar, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa,
o autor rebateu a versão do historiador baiano, tentando demonstrar que a
Guerra dos Emboabas significou, acima de tudo, a luta dos paulistas – e
nacionais – em defesa do patrimônio brasileiro e, como tal, constituiu uma
etapa necessária da emancipação da nação brasileira. Para ele, a documentação
inédita, produzida em sua maioria pelos governadores do Rio de Janeiro e pelo
Conselho Ultramarino, interessava na medida em que contrariava a versão emboaba
de seu adversário, evidenciando que os homens da governança “não se voltaram,
como Rocha Pita, contra São Paulo. Ao contrário, são bem favoráveis aos
paulistas. E não devem ser tachados de parciais”.
No entanto, essa documentação inédita – de uma riqueza
indescritível – permaneceu inexplorada. Afinal, um dos pressupostos
metodológicos do autor residia na ideia de que as fontes são transparentes e
falam por si, e ele – como depois faria Isaías Golgher – limitou-se a
transcrever longas passagens dos documentos, sem problematizá-los ou
esmiuçá-los em suas múltiplas possibilidades. Assim, a descoberta da nova documentação
pouca luz jogou sobre o tema, e mesmo a natureza das reivindicações dos
paulistas não foi suficientemente esclarecida.
Guerra civil
Em 1956, veio à luz um vasto estudo sobre a Guerra dos
Emboabas, de autoria de Isaías Golgher. Influenciado pelas análises de
Varnhagen, o primeiro historiador a sugerir o conceito de guerra civil,
definiu-a como “a primeira guerra civil nas Américas”, destacando como evento
mais importante – aquele que dava sentido a todo o episódio – a eleição de
Manuel Nunes Viana para o cargo de governador, feita em assembléia formada
pelos moradores dos arraiais conquistadores e pelos representantes dos demais.
A relevância da eleição devia-se ao fato de que “Minas Gerais teve, portanto,
seu primeiro governador eleito pelo povo, e cuja autoridade foi mantida pela
força das armas”. Em vez de ditador, Nunes Viana aparece como “o primeiro mandatário
do povo mineiro” e, como precursor de Tiradentes, “projetou-se por dezenas de
anos na vida colonial, como símbolo de resistência do povo oprimido contra o
poder tirânico português”.
É curioso que a origem portuguesa do governador emboaba
tenha pesado pouco na análise de Golgher, ao contrário do que sucedeu com
outros autores, que o viram como representante dos interesses metropolitanos. Na
verdade, antecipando uma tendência historiográfica importante, Golgher
substitui a pretensa nacionalidade portuguesa dos emboabas pela ampla e
heterogênea categoria de forasteiros. Assim, tratava-se de uma guerra entre
paulistas e forasteiros, e não entre paulistas e reinóis. Mais que isso, os
forasteiros constituíam o “povo mineiro”, que, ainda nos primórdios de sua
formação,
empunhava armas contra a tirania dos paulistas, cuja aversão
Golgher mal dissimula, referindo-se a eles como fautores do “despotismo
bandeirante”.
Subvertendo as interpretações então dominantes, Golgher
resumia tudo a uma fórmula muito simples: os paulistas – que se caracterizavam
pelo “tratamento despótico e desdenhoso” que dispensavam a todos – representavam
o poder arrecadador, em última instância, a metrópole, que, por meio deles,
fazia funcionar “uma engrenagem fiscal que, além de ter sido obstrucionista em
relação ao desenvolvimento econômico da região, foi também escorchante e poucas
pessoas não tentavam transgredi-la”. Surpreendentemente, os paulistas, tidos secularmente
como os mais rebeldes vassalos da Coroa portuguesa, aparecem como seus fiéis
representantes. Golgher notava ainda que os forasteiros eram espoliados duplamente,
pois pagavam os tributos à Coroa e “as
propinas exigidas pelos funcionários bandeirantes”. Mediante
um esforço analítico duvidoso, em muito tributário da versão emboaba, o levante
afigurou-se-lhe assim a resistência contra o que chamou de “opressão colonialista”.
Pouco aptos aos trabalhos de mineração, os paulistas – apresentados como
bandeirantes – significavam um obstáculo ao desenvolvimento da capitania,
porque, “embora um elemento insubstituível na penetração, na exploração
pacífica era completamente falho e deficiente, estorvante mesmo”.
Retomando um clichê do discurso emboaba, Golgher descreveu
Manuel Nunes Viana como um homem dotado de “personalidade extraordinária”, o
qual, renunciando à violência e às arbitrariedades de um meio em que imperava a
força bruta, teria pautado suas ações pela razão e justiça. Golgher negou mesmo
que o episódio conhecido como Capão da Traição – a mácula terrível do governo
emboaba, responsável pelo massacre de dezenas de paulistas – tivesse ocorrido:
“ingressou essa lenda através da tradição verbal e figura em todos os trabalhos
que versam sobre o assunto, adquirindo foros de um autêntico fato histórico à
força de repetição”.
Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais,
Isaías Golgher reescrevia a história de Minas a partir do pretenso povo
mineiro, identificado às levas de forasteiros e reinóis, opondo-se firmemente à
historiografia paulista, que, instalada no Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo, enaltecia os feitos dos bandeirantes, alçando-os ao panteão da
história nacional. Se emboaba designava o povo mineiro, Manuel Nunes Viana bem
podia ser considerado o precursor de Tiradentes, como primeiro arauto da
liberdade contra a opressão da metrópole.
Era dos potentados
Sob muitos aspectos, as análises da Guerra dos Emboabas
versavam também sobre o tema mais amplo da implantação do Estado português nos
sertões mineiros: aos autores vinculados à versão paulista, tratava-se
sobretudo de um movimento de resistência, nutrido por um nativismo precoce, que
se transformaria depois na história da emancipação do povo brasileiro. Aos
partidários da versão emboaba, o que estava em jogo era a necessidade de
instauração da ordem política, numa região dominada pela violência e pelos poderes
privados, constituídos à margem do Estado. Em ambos os casos, a característica
mais importante do alvorecer das Minas residia na completa ausência de
instituições jurídicas e administrativas, capazes de garantir a soberania
portuguesa, solapada pelo que ficaria conhecido como a “era dos potentados”.
Esse tipo de interpretação, imbuída do julgamento sobre a verdadeira natureza
do Estado, excluía sumariamente a possibilidade da emergência de formas de
organização política e social à sombra do poder oficial e mesmo a ação decisiva
dos potentados – evidência inequívoca do vigor dos poderes privados – foi vista
como a anarquia e o caos típicos de uma sociedade não institucionalizada.
Do ponto de vista historiográfico, os estudos sobre a Guerra
dos Emboabas limitaram-se a uma crônica mais ou menos documentada dos
acontecimentos, em que o principal objetivo consistia em descobrir o que de
fato se passou, trazendo à tona a verdade do episódio. Ao lado dessa inspiração
positivista, havia ainda a necessidade de apreender o caráter ideológico do
conflito, engastando-o na cadeia das revoltas que desembocariam necessariamente
na emancipação da nação em 1822 e situando, ao mesmo tempo, o partido que era
depositário da causa nacional.
Outro equívoco muito comum em que incorreram as análises
tradicionais sobre a Guerra dos Emboabas consiste no pecado capital da história
– o anacronismo, expresso na tendência a reduzir o evento a uma racionalidade
que é a do nosso tempo. Disso resulta a estranha sensação de que tudo parece
encadear-se de forma lógica, como se paulistas e emboabas partilhassem da nossa
visão de mundo e fossem movidos pelos mesmos valores e anseios. Não há lugar
para a surpresa, o estranhamento e tampouco para a história. A naturalização do
passado conduz inexoravelmente à supressão da história como diferença,
substituindo-a por uma história como obviedade, em que não há questões ou
problemas a serem enfrentados.
Outra limitação recorrente nos estudos sobre o tema refletiu-se
no recorte temporal e espacial muito restrito, dando lugar a abordagens
excessivamente focadas na
Guerra dos Emboabas, sem que se buscasse articulá-la ao
contexto mais amplo do Império português ou da própria história dos atores nela
envolvidos. Para grande parte dos historiadores, o episódio encerrava-se em si mesmo,
numa temporalidade curta e fortuita, surgindo e morrendo como uma flor no
deserto.
De todas as considerações anteriores resulta a constatação
de que, viciado pelas lutas ideológicas e pelas limitações analíticas, a par
com a pobreza documental imposta pelos arquivos, o tema da Guerra dos Emboabas jamais
foi explorado como um campo privilegiado para o estudo da cultura política
peculiar que floresceu nas Minas, construída na experiência histórica de homens
e mulheres que traziam na bagagem concepções, ideias e tradições sobre o
universo da política. Evidentemente, semelhante postura metodológica parte de
um princípio antropológico, descuidado por muitos, de que um imenso abismo nos
separa do passado. Os anos de 1708 e 1709 constituem uma verdadeira “terra
estrangeira”, na qual é preciso adentrar com a convicção de que se trata de uma
experiência de alteridade. E um dos resultados mais instigantes dessa incursão
é a constatação de que o imaginário político que emerge nas Minas ao longo de todo
o século XVIII era tributário das ideias e práticas políticas de paulistas e
emboabas.
O contexto histórico da chamada Guerra dos Emboabas oferece
um observatório privilegiado para uma abordagem dos imaginários centrada nos
jogos de oposição e tensão, derrubando por terra uma noção excessivamente
consensual das ideias e práticas políticas. Em vez de uma mera disputa por
terras e riquezas minerais, a Guerra dos Emboabas foi, sobretudo, um conflito
entre práticas e concepções políticas de paulistas e forasteiros, as quais,
provenientes de experiências históricas diferentes, desembocariam em fins do
século XVII no cenário explosivo das Minas. Mais do que o campo de batalha, os
imaginários ofereceram a arena de luta em que ambas as facções digladiaram-se,
buscando legitimar suas reivindicações à luz de suas próprias formulações
políticas.
Tradição insurgente
Voltar aos anos de 1708 e 1709 significa reencontrar o
momento em que afloram as matrizes da tradição insurgente – e também a não
insurgente – que despontaria aqui e ali em todo o Setecentos mineiro. Daí os
riscos de uma visão microscópica em que as Minas esgotem o horizonte da
análise, em vez da perspectiva da América portuguesa, em primeiro plano, e a do
Império português, em segundo. Afinal, foram muitas as conexões que articulavam
um levante localizado nos sertões distantes e inacessíveis da América ao
contexto do império. Os estudos anteriores ignoraram, por exemplo,
que a destituição de governadores e autoridades locais e a
eleição de outros haviam se tornado, logo depois da Restauração de 1640, uma
prática comum nos quatro cantos do império e que a eleição de Manuel Nunes Viana
inseria-se assim no contexto de disseminação das concepções e práticas
políticas do Portugal restaurado.
A reformulação da problemática relativa à Guerra dos Emboabas,
renovada pelas contribuições recentes da história cultural e sobretudo da
história política, dribla, por sua vez, o velho problema das fontes.
Infelizmente, o corpus documental dos velhos historiadores continua a ser, em
linhas gerais, o único conjunto de evidências diretamente relacionado com a
Guerra dos Emboabas. Surpreendentemente, sobretudo se comparado à Guerra dos
Mascates, ocorrida pouco depois, o levante emboaba foi muito mal documentado:
não há registros precisos, por exemplo, sobre as batalhas e confrontos entre paulistas
e emboabas e a condução do governo emboaba. Tampouco existem relatos sobre a
versão paulista – que pode ser rastreada apenas em fontes indiretas.
O silêncio dos arquivos pode ser explicado pelo fato de que,
na primeira década do século XVIII, Minas estava muito longe de ser uma
civilização da palavra escrita – ou
civiltà da lettera bollata, como o era a Europa da época. O precário
aparato institucional – que punha tudo nas mãos do guarda-mor – parecia
funcionar sobretudo no plano da oralidade: era por meio da palavra falada que
se resolviam os conflitos e disputas e se procediam à repartição e distribuição
das datas minerais. Menos que um burocrata, o guarda-mor era, principalmente,
um conciliador.
Presença do nativismo
Escoimada dos velhos debates ideológicos, a Guerra dos
Emboabas reassume seu verdadeiro lugar na história mineira, subvertendo as
abordagens tradicionais orientadas para o sentido nativista de seus
protagonistas. O conceito de nativismo, tão caro à velha historiografia aferrada
ao mito da independência, traduzia a convicção mais profunda sobre a existência
de uma contradição irreconciliável entre a colônia e a metrópole, originada fosse
pelo estatuto fosse pelo exclusivo colonial. Mas, afinal, o que as fontes
permitem afirmar acerca do caráter nativista do movimento? Se entendermos o nativismo
como expressão de amor à pátria, o conceito não se aplica aos emboabas, que
eram, por definição, forasteiros, homens recém-chegados à zona mineradora, provenientes
da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, de Portugal e outros países europeus.
Essa massa de imigrantes, comparada por Antonil com as tribos de Israel que
perambulavam pelo deserto de um lado para o outro, estabeleceu-se ali a partir
de 1695, há cerca de 12 anos do levante emboaba, e, em 1705, atinge a cifra vertiginosa
de 50 mil indivíduos. A terra que encontraram nos sertões de Cataguases era
muito diferente da “terra prometida” dos hebreus: lugar áspero, hostil,
desprovido de mantimentos, povoado por tribos de índios bravios e animais
ferozes, que em pouco tempo tornou-se o cenário de fomes terríveis, que
custariam a vida de muitos.
Seriam então os paulistas os campeões da causa nativista?
Descobridores da região, eles vinham percorrendo-a desde meados do século XVII,
em suas andanças pelos sertões em busca de índios. Em suas reivindicações
dirigidas à Coroa, alegavam o direito de conquista, que constituía o cerne da
justificação ideológica com que defendiam as suas aspirações na região
mineradora. O direito de conquista, corrente no vocabulário político do antigo
regime português, assentava-se na ideia de que os conquistadores mereciam um
tratamento privilegiado por parte da Coroa, porque eram os únicos responsáveis
por um feito alcançado à custa do seu sangue, vidas e fazendas. Dessa forma,
grande parte das reivindicações por terras baseava-se na ideia de que os
requerentes haviam sido os responsáveis pela colonização da região,
desbaratando tribos de índios selvagens e promovendo a povoação nas terras
deles conquistadas, com gastos da fazenda.
A alegação de um direito de conquista, ligado ao pedido de
sesmarias e à obtenção de certos privilégios, era uma prática bastante comum
entre as gentes da América portuguesa. Aos paulistas, importava transformar os
serviços prestados à Coroa na empresa dos descobrimentos em mercês que lhes
garantissem o domínio político sobre a região: isso era, afinal, o que pleiteavam,
quando exigiam o monopólio das terras, cargos, postos e patentes militares.
Quando chamados para destruir Palmares, no século anterior, os paulistas também
se bateram por essas mesmas recompensas, o que evidencia uma concepção muito
peculiar da relevância dos serviços prestados à Coroa e do pagamento que
consideravam justo. Tanto em Palmares quanto em Minas, parece impossível
imputar aos paulistas o sentimento de amor à pátria – que, de resto, não
cultivavam nem mesmo à vila de São Paulo, pois que viviam em busca de novas
terras, onde quer que fossem, para ali se instalarem com a família e agregados.
Dimensões trágicas?
A construção historiográfica da Guerra dos Emboabas – com
sua cronologia particular, suas causas e seu sentido mais profundo – merece uma
ampla revisão, para que se redimensione o evento no contexto das lutas
coloniais, escoimando-a dos lugares-comuns que se cristalizaram ao longo do
tempo, por obra tanto dos cronistas coevos quanto dos relatos historiográficos.
Exemplo desses lugares-comuns é a ideia, disseminada em grande parte dos estudos,
segundo a qual o conflito teria assumido dimensões trágicas, revestindo-se de
um caráter sangrento – do qual o Capão da Traição seria a epítome – e
resultando na morte de milhares de indivíduos. Nada mais equivocado. Aliás, é
significativo o fato de que, nas narrativas escritas ainda no século XVIII, o
conflito tenha sido descrito apenas como um levante dos emboabas contra os paulistas
– e não como uma guerra propriamente dita.
É somente no século XIX que a expressão “guerra civil” começa
a ganhar terreno, especialmente sob a pena de Varnhagen, cuja obra se tornaria
depois uma referência aos estudiosos do assunto. É bem verdade que Varnhagen pouca
importância deu ao conflito, originário da “cobiça dos dois partidos”, cujos
“pretextos foram tão fúteis que nem devem merecer lugar na história”. Por essa
razão, reservou pouco mais de uma página ao episódio. Em fins do século XIX, a
expressão “guerra civil” já estava
plenamente sedimentada entre os historiadores, ao mesmo tempo
que o episódio assumia um tom dramático e sangrento, a exemplo do que escreve
Xavier da Veiga, que se refere à “longa e sanguinolenta contenda entre
paulistas e os denominados emboabas”, a “forças tão numerosas” e ao “objetivo
de extermínio”. Para a incipiente historiografia mineira, representada por
Diogo de Vasconcelos, a ocorrência de uma guerra de proporções grandiosas no alvorecer
das Minas conferia uma dimensão romântica à história mineira, aproximando-a dos
grandes impérios da Antiguidade, nascidos também sob o signo de Marte.
Assim, o que para alguns contemporâneos sequer chegara a
configurar um conflito perdeu pouco a pouco a sua terminologia original, para
dar lugar a outras que, relacionadas à ideia de guerra, acabaram por lhe
conferir uma nova natureza. Parece, portanto legítimo afirmar que o levante
emboaba prestou-se a uma série de apropriações ideológicas, filiadas tanto ao
nativismo histórico – em sua busca pelas raízes da nação independente – quanto
ao mito da mineiridade, principalmente a exaltação de uma vocação republicana, representada
sobretudo por Tiradentes. Como toda efeméride auspiciosa, os 300 anos da Guerra
dos Emboabas constituem um evento importante que merece ser celebrado. E não
faltam razões para fazê-lo. Porém, a data deve se prestar a uma reflexão crítica
sobre as sucessivas apropriações que se fizeram do passado, situando-as nos debates
ideológicos que o contaminaram e que acabaram por lhe distorcer o sentido mais
profundo. Mais que simplesmente comemorar, é preciso antes rememorar.
Adriana Romeiro é professora associada do Departamento de
História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de três
livros, entre eles o Dicionário
Histórico das Minas Gerais: período colonial (em coautoria com
Angela Vianna Botelho). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a circulação de
manuscritos políticos em Minas Gerais no século XVIII.
fonte: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/ensaio01_2009.pdf
fonte: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/ensaio01_2009.pdf
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