segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Guerra dos Emboabas



Em 2008, comemorou-se o tricentenário da Guerra dos Emboabas. Um ano antes, a imprensa, fiel à cronologia mais tradicional, apressou-se em celebrar a data, e um e outro artigo foi publicado, repisando os velhos clichês sobre o evento, a exemplo do caráter nativista e a cobiça pelo ouro como principal motor. A efeméride oferece uma boa oportunidade para se refletir sobre a fortuna crítica do conflito, que, inexplicavelmente, permanece pouco explorado pelos estudiosos. O enorme fascínio da Inconfidência Mineira tendeu a ofuscar tudo à sua volta, transformando o século XVIII mineiro numa crônica quase pacífica, ameaçada pela ousadia de Tiradentes, o mais legítimo arauto da causa da Independência contra uma metrópole tirânica e espoliadora. Em comparação com ela, a Guerra dos Emboabas parece perder seu vigor e sua relevância histórica – e mesmo o fato de ter ocorrido nas origens da história mineira, revestindo-a das dimensões de um evento fundador, foi considerado antes uma fraqueza, uma vez que se confundia com a infância de um povo que só alcançaria maturidade muito tempo depois.

Há quase dois séculos, a Guerra dos Emboabas integra o repertório das chamadas revoltas nativistas, expressão que designa os movimentos coloniais que tinham em sua origem o sentimento de amor à pátria e que se opunham à opressão da metrópole. É bem conhecida a tradição da historiografia oitocentista de conceber os movimentos políticos do período colonial em função de um suposto ideal de libertação nacional, associado à paulatina tomada de consciência em relação à metrópole, que desembocaria na independência do Brasil. Sob essa perspectiva, as revoltas coloniais constituiriam prefigurações de um acontecimento culminante que, completando os elos de uma cadeia, dotava-as de sentido e lógica, inscrevendo-as numa única totalidade. Ao lado de eventos como a Revolta de Beckmann, a Insurreição Pernambucana e a Guerra dos Mascates, a Guerra dos Emboabas seria, assim, o despertar do nativismo em solo mineiro, a pungente luta do colonial contra o metropolitano.





Problema para historiadores

Mas, diferentemente das demais revoltas nativistas, nas quais não há dificuldade para se identificar o grupo social imbuído de um caráter autonomista ou nacionalista, a Guerra dos Emboabas impôs um problema sério aos historiadores: seriam os paulistas ou os emboabas os verdadeiros nativistas, os campeões da causa nacional? A questão dividiu a historiografia, que se viu então mergulhada em longo e estéril debate sobre o caráter ideológico do movimento. Naquele contexto, a investigação empírica estava fora do horizonte dos estudos e grande parte do que se escreveu sobre o tema permaneceu atrelado a um corpus documental bastante fragmentário e reduzido. A polêmica historiográfica girava, então, em torno da interpretação das evidências e, à exceção de Soares de Mello, nenhum historiador se aventurou em direção a novos fundos documentais.

O certo é que as matrizes analíticas da Guerra dos Emboabas haviam sido estabelecidas ainda no século XVIII, por autores como Rocha Pita, Manuel da Fonseca, Pedro Taques Paes Leme e Cláudio Manuel da Costa. Estes foram os primeiros a tratar do tema, a partir de uma perspectiva mais ou menos histórica, adotando, em razão da proximidade dos eventos que relatavam, a versão de um ou outro partido em conflito. A obra de Rocha Pita é, sem dúvida, a principal matriz dos estudos de orientação pró-emboaba: entusiasta da colonização portuguesa, seu autor não nutria simpatia pelos homens da vila de São Paulo, que reputava tiranos, cruéis e bárbaros, contra os quais haviam se levantado legitimamente os emboabas liderados por Nunes Viana. Tanto a descrição quanto a interpretação que fez do levante seguem à risca a versão forjada pelo partido emboaba, coincidindo com ela em praticamente todos os aspectos, inclusive na ênfase dada aos males provocados pela descoberta das minas dos Cataguases, as quais haviam ameaçado levar o Brasil até a sua “última ruína”.



Outras leituras

Apesar do projeto de escrever uma “verdadeira notícia do levantamento que houvera nas Minas Gerais”, Pedro Taques deixou apenas umas poucas páginas, espalhadas nos verbetes da Nobiliarquia paulistana, histórica e genealógica. Para ele, a origem das dissensões entre paulistas e emboabas residia naquela “néscia e abominável desafeição introduzida nos europeus portugueses contra os paulistas...”. Das suas páginas, os paulistas, “que em número eram menos poderosos que os da Europa”, emergem como vítimas da tirania dos reinóis liderados por Nunes Viana, apresentado como “alentado, porém tirano, com maior crueldade que valor, com que havia feito na sua pátria muitos homicídios e insolências grandes”. Fiel à memória construída pelos paulistas sobre os seus feitos nas Minas, Pedro Taques transformou-os em protagonistas por excelência da saga dos descobrimentos: valorosos e intrépidos, descendentes das mais finas linhagens ibéricas, haviam se lançado aos sertões indevassados, conquistando-os duramente ao gentio bravio.

A matriz consagrada por esse ilustre filho do clã Leme, que fizera tantos descobridores notáveis, como Fernão Dias Pais e Garcia Rodrigues Pais, seria apropriada, com alguns retoques, por Cláudio Manuel da Costa, no poema Vila Rica e em seu Fundamento histórico, este último considerado o “primeiro marco do que se pode chamar, propriamente, de memorialística histórica das Minas setecentistas”. Refutando a versão emboaba sobre a rebeldia inata dos paulistas, mais especificamente a interpretação de Rocha Pita, o poeta resgata a epopeia dos homens do Planalto de Piratininga, revestindo-a com caracteres grandiloquentes e monumentais e descrevendo seus protagonistas como “os que nesta América têm dado ao mundo as maiores provas de obediência, fidelidade e zelo pelo seu rei, pela sua pátria e pelo seu reino”.

A apropriação acrítica dessas matrizes setecentistas resultou numa historiografia altamente ideologizada e marcadamente descritiva, desprovida de um esforço de reflexão mais amplo e escorada em adjetivos exaltados. Nos séculos XIX e XX, a historiografia de orientação paulista, engajada na construção do mito do paulista como bandeirante, derivada diretamente das obras de Pedro Taques e frei Gaspar da Madre de Deus, retomaria a Guerra dos Emboabas concebendo-a como a luta aguerrida dos homens do Planalto em defesa dos interesses da pátria, ameaçados pelos reinóis.

O recurso a um corpus documental limitado e a filiação às vertentes interpretativas do século XVIII resultaram numa historiografia pouco original, em que as obras tendem a se repetir, cujo principal ponto de partida reside na indagação sobre a legitimidade histórica das reivindicações de paulistas e forasteiros. A polêmica sobre o nativismo conviveu lado a lado com interpretações de orientação marxista, marcadas pela tentativa de caracterizar o conflito como uma luta de classes entre mineradores e mercadores. As análises, em sua quase totalidade, voltaram-se para uma abordagem eminentemente econômica – da qual derivaria a questão do nativismo, como instrumento contra a opressão –, de modo a articular a disputa com os interesses materiais mais imediatos dos grupos envolvidos.

Tentativa pioneira

Alguns trabalhos merecem atenção especial, por terem se tornado referência obrigatória para os estudiosos do tema, fosse pela apresentação de fontes inéditas, fosse pelo escopo de sua abordagem teórico-metodológica. É o caso da História antiga de Minas Gerais, de autoria de Diogo de Vasconcelos, publicada em 1901. Com justiça, Francisco Iglésias observou que a obra é uma “tentativa pioneira de estudo de conjunto dos primeiros anos de Minas”, sistematizando o que “andava disperso em livros, crônicas ou memórias, nas tradições populares”.O que surpreende no trabalho de Vasconcelos, para além da qualidade da narrativa e da grande erudição, é que pela primeira vez um historiador espanou a poeira dos papéis do Arquivo Público Mineiro, jogando luzes sobre o vasto continente – até então indevassado – da história mineira. Nesse sentido, Diogo de Vasconcelos bem merece o título de primeiro grande historiador das Minas Gerais, autor de uma obra de qualidade inestimável, apesar da sua aparente falta de rigor e da descontinuidade de sua produção.

A descrição que Vasconcelos faz da Guerra dos Emboabas é, sem dúvida, um dos pontos altos do livro, e ele se revela um apaixonado pelo tema, dedicando-lhe páginas verdadeiramente inspiradas. A análise principia com a constatação do estado de isolamento e dispersão dos núcleos populacionais, dominados por donatários autônomos, que se entregavam às rivalidades atávicas e aos ódios separatistas. Segundo ele, “tantas pátrias assim se criaram, quantas as colônias”. Tão inevitáveis eram as dissensões pela posse dos terrenos que, se não fossem entre paulistas e forasteiros, certamente seriam entre os primeiros e os taubateanos. Perspicaz, Vasconcelos remonta ao processo de formação de Portugal o estado de isolamento, também “formado de senhorios e conselhos autônomos, cada qual trazendo a sua história particular das vicissitudes da Península”, do que resultou a força dos poderes locais, que pululavam fora da órbita em que gravitava o centro político do império – este também dominado por particularismos de toda sorte. Para ele, não se tratava ainda do conceito de pátria como um todo – tal como se entendia à época –, mas dos particularismos característicos de uma colônia em que o poder central estava distante e mal podia alcançar todos os rincões, dando lugar ao nativismo partilhado tanto por paulistas quanto por emboabas.

Imbuído das ideias de seu tempo sobre os paulistas, considerou-os “os nossos argonautas” e posicionou-se mesmo em favor deles. Escrevendo antes da obra de
Alcântara Machado, que pintaria um cenário de pobreza e rusticidade, Vasconcelos criou uma vila de São Paulo mítica, herdeira das formulações nobiliárquicas de Pedro Taques. Fascinava-o na São Paulo de Piratininga “o esplendor do culto feito pelos padres da Companhia, as famílias nobres e principais que ali moravam, as artes que floresciam, o luxo dos potentados, as alegrias da liberdade”.

Apesar de sua simpatia pelos paulistas, justificou a aclamação de Manuel Nunes Viana e refutou a interpretação tradicional da guerra como uma “revolução bárbara”, considerando-a a solução necessária num momento de crise: “[...] ela se justifica e se legitima a nossos olhos, como fenômeno reacionário e próprio das situações apertadas, quando a sociedade, conservando ainda instintos do direito, quer-se salvar do seu total e afrontoso aniquilamento”. Para ele:

Manuel Nunes Viana, obrigado a tomar as armas, defendia a liberdade e a vida de seus compatriotas e bem sabia que sorte o esperava, quer como vencedor, quer como vencido, em poder do Soberano. Seus bens, sua vida, sua tranqüilidade, tudo expôs aos azares, como simplesmente era ocasional a sua autoridade.

A sagração do ditador, que situou no arraial da Cachoeira, quando teria sido revestido da espada e das insígnias do governo, foi considerada por ele um “fato singular e extraordinário”, que dava aos princípios das Minas “o prisma dos impérios romanescos”.

Suas páginas sobre a Guerra dos Emboabas surpreendem, contudo, pelo tom apaixonado com que evoca o quadro vívido e fascinante dos acontecimentos, narrados num ritmo trepidante e protagonizados por agentes históricos vigorosos e densos. A batalha da Cachoeira é particularmente reveladora do estilo do autor:

[...] os paulistas, acudindo ao novo perigo, enfraqueceram a linha do Jardim, e as hostes o ditador, por ali penetrando, vieram travar a batalha no centro do arraial, cujo recinto se converteu num circo de feras, tal o furor dos combatentes. Pelejou-se peito a peito.

Como muitos em seu tempo, Vasconcelos não tinha o hábito de citar fontes e arquivos, apesar de sua obra basear-se em vasta pesquisa documental. Mas, mesmo um autor como Francisco Iglésias, que o reputa um historiador rigoroso e cuidadoso, admite que a narrativa sobre a Guerra dos Emboabas, pelo seu tom romanesco e exaltado, beira a ficção. Alguns indícios parecem indicar que ele tenha se inspirado em um livro manuscrito escrito no século XIX que se perdeu, restando apenas alguns fragmentos dele, compilados pelo historiador João Batista Costa, cuja semelhança com a sua narrativa é espantosa. De qualquer modo, depois de Rocha Pita, a narrativa de Vasconcelos sobre a Guerra dos Emboabas tornou-se a referência mais importante dos estudiosos, citado muitas vezes com foros de fonte histórica, sem que se procedesse a uma crítica mais cuidadosa de suas afirmações.

Revolução nativista

Outra obra importante é de autoria de J. Soares de Mello, para quem a Guerra dos Emboabas foi antes de tudo uma “revolução nativista”: o “noviciado da liberdade para a terra de Santa Cruz”. Escrevendo em 1929, sob a poderosa influência da onda pró-paulista que avassalava a historiografia nacional, Soares de Mello fez a apologia dos homens do Planalto de Piratininga, os legítimos representantes da nação brasileira, em oposição aos emboabas, vistos como sinônimo de reinol e português. Para ele, “os reinóis, na colônia, no interior do país, procediam incorretamente, criminosamente”. Interessados apenas na conquista, descuidavam-se da colonização sistemática, e a causa
da revolta “é a mesma das comoções intestinas de outros povos, causas velhas, e sempre novas, resumidas no exagero da tributação”. O autor consegue ver um “ideal nacionalista”, em torno do qual os paulistas, movidos pelo amor ao solo, expressariam o “ódio ao estrangeiro”. Nesse sentido, a Guerra dos Emboabas “é a primeira repulsa ao português”. Em vez de herói libertador, Manuel Nunes Viana, cuja origem portuguesa é destacada, surge como o primeiro ditador da América, agregando à sua volta uma “gente bronca e supersticiosa [que] cegamente o obedeceria, ainda nos caprichos pequeninos de sertanejo empafioso”.

Entretanto, a grande novidade de Soares de Mello é o seu esforço em garimpar novas fontes para a investigação, pois até então “nenhum deles [historiadores da guerra] se decidiu a revolver os arquivos para reconstituí-la”. Para o autor, sua obra vinha cobrir uma lacuna importante, denunciada havia muito, pois que se limitavam os estudiosos a “narrar de ligeiro e, ainda assim, “deturpando os fatos”. Mas o grande alvo de
Soares de Mello era a interpretação dada por Rocha Pita, em sua História da América portuguesa, a quem acusava de propor uma abordagem partidária dos reinóis e contrária aos paulistas, que teria contaminado os estudos sobre o tema feitos até então. Pita, interessado em escrever uma história apaixonada com o objetivo de conseguir os favores do rei, teria renunciado à pesquisa documental, valendo-se apenas dos depoimentos e declarações de reinóis.

A partir de documentação inédita, proveniente do então fundo do Arquivo de Marinha e Ultramar, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa, o autor rebateu a versão do historiador baiano, tentando demonstrar que a Guerra dos Emboabas significou, acima de tudo, a luta dos paulistas – e nacionais – em defesa do patrimônio brasileiro e, como tal, constituiu uma etapa necessária da emancipação da nação brasileira. Para ele, a documentação inédita, produzida em sua maioria pelos governadores do Rio de Janeiro e pelo Conselho Ultramarino, interessava na medida em que contrariava a versão emboaba de seu adversário, evidenciando que os homens da governança “não se voltaram, como Rocha Pita, contra São Paulo. Ao contrário, são bem favoráveis aos paulistas. E não devem ser tachados de parciais”.

No entanto, essa documentação inédita – de uma riqueza indescritível – permaneceu inexplorada. Afinal, um dos pressupostos metodológicos do autor residia na ideia de que as fontes são transparentes e falam por si, e ele – como depois faria Isaías Golgher – limitou-se a transcrever longas passagens dos documentos, sem problematizá-los ou esmiuçá-los em suas múltiplas possibilidades. Assim, a descoberta da nova documentação pouca luz jogou sobre o tema, e mesmo a natureza das reivindicações dos paulistas não foi suficientemente esclarecida.

Guerra civil

Em 1956, veio à luz um vasto estudo sobre a Guerra dos Emboabas, de autoria de Isaías Golgher. Influenciado pelas análises de Varnhagen, o primeiro historiador a sugerir o conceito de guerra civil, definiu-a como “a primeira guerra civil nas Américas”, destacando como evento mais importante – aquele que dava sentido a todo o episódio – a eleição de Manuel Nunes Viana para o cargo de governador, feita em assembléia formada pelos moradores dos arraiais conquistadores e pelos representantes dos demais. A relevância da eleição devia-se ao fato de que “Minas Gerais teve, portanto, seu primeiro governador eleito pelo povo, e cuja autoridade foi mantida pela força das armas”. Em vez de ditador, Nunes Viana aparece como “o primeiro mandatário do povo mineiro” e, como precursor de Tiradentes, “projetou-se por dezenas de anos na vida colonial, como símbolo de resistência do povo oprimido contra o poder tirânico português”.

É curioso que a origem portuguesa do governador emboaba tenha pesado pouco na análise de Golgher, ao contrário do que sucedeu com outros autores, que o viram como representante dos interesses metropolitanos. Na verdade, antecipando uma tendência historiográfica importante, Golgher substitui a pretensa nacionalidade portuguesa dos emboabas pela ampla e heterogênea categoria de forasteiros. Assim, tratava-se de uma guerra entre paulistas e forasteiros, e não entre paulistas e reinóis. Mais que isso, os forasteiros constituíam o “povo mineiro”, que, ainda nos primórdios de sua formação,
empunhava armas contra a tirania dos paulistas, cuja aversão Golgher mal dissimula, referindo-se a eles como fautores do “despotismo bandeirante”.

Subvertendo as interpretações então dominantes, Golgher resumia tudo a uma fórmula muito simples: os paulistas – que se caracterizavam pelo “tratamento despótico e desdenhoso” que dispensavam a todos – representavam o poder arrecadador, em última instância, a metrópole, que, por meio deles, fazia funcionar “uma engrenagem fiscal que, além de ter sido obstrucionista em relação ao desenvolvimento econômico da região, foi também escorchante e poucas pessoas não tentavam transgredi-la”. Surpreendentemente, os paulistas, tidos secularmente como os mais rebeldes vassalos da Coroa portuguesa, aparecem como seus fiéis representantes. Golgher notava ainda que os forasteiros eram espoliados duplamente, pois pagavam os tributos à Coroa e “as
propinas exigidas pelos funcionários bandeirantes”. Mediante um esforço analítico duvidoso, em muito tributário da versão emboaba, o levante afigurou-se-lhe assim a resistência contra o que chamou de “opressão colonialista”. Pouco aptos aos trabalhos de mineração, os paulistas – apresentados como bandeirantes – significavam um obstáculo ao desenvolvimento da capitania, porque, “embora um elemento insubstituível na penetração, na exploração pacífica era completamente falho e deficiente, estorvante mesmo”.

Retomando um clichê do discurso emboaba, Golgher descreveu Manuel Nunes Viana como um homem dotado de “personalidade extraordinária”, o qual, renunciando à violência e às arbitrariedades de um meio em que imperava a força bruta, teria pautado suas ações pela razão e justiça. Golgher negou mesmo que o episódio conhecido como Capão da Traição – a mácula terrível do governo emboaba, responsável pelo massacre de dezenas de paulistas – tivesse ocorrido: “ingressou essa lenda através da tradição verbal e figura em todos os trabalhos que versam sobre o assunto, adquirindo foros de um autêntico fato histórico à força de repetição”.

Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Isaías Golgher reescrevia a história de Minas a partir do pretenso povo mineiro, identificado às levas de forasteiros e reinóis, opondo-se firmemente à historiografia paulista, que, instalada no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, enaltecia os feitos dos bandeirantes, alçando-os ao panteão da história nacional. Se emboaba designava o povo mineiro, Manuel Nunes Viana bem podia ser considerado o precursor de Tiradentes, como primeiro arauto da liberdade contra a opressão da metrópole.

Era dos potentados

Sob muitos aspectos, as análises da Guerra dos Emboabas versavam também sobre o tema mais amplo da implantação do Estado português nos sertões mineiros: aos autores vinculados à versão paulista, tratava-se sobretudo de um movimento de resistência, nutrido por um nativismo precoce, que se transformaria depois na história da emancipação do povo brasileiro. Aos partidários da versão emboaba, o que estava em jogo era a necessidade de instauração da ordem política, numa região dominada pela violência e pelos poderes privados, constituídos à margem do Estado. Em ambos os casos, a característica mais importante do alvorecer das Minas residia na completa ausência de instituições jurídicas e administrativas, capazes de garantir a soberania portuguesa, solapada pelo que ficaria conhecido como a “era dos potentados”. Esse tipo de interpretação, imbuída do julgamento sobre a verdadeira natureza do Estado, excluía sumariamente a possibilidade da emergência de formas de organização política e social à sombra do poder oficial e mesmo a ação decisiva dos potentados – evidência inequívoca do vigor dos poderes privados – foi vista como a anarquia e o caos típicos de uma sociedade não institucionalizada.

Do ponto de vista historiográfico, os estudos sobre a Guerra dos Emboabas limitaram-se a uma crônica mais ou menos documentada dos acontecimentos, em que o principal objetivo consistia em descobrir o que de fato se passou, trazendo à tona a verdade do episódio. Ao lado dessa inspiração positivista, havia ainda a necessidade de apreender o caráter ideológico do conflito, engastando-o na cadeia das revoltas que desembocariam necessariamente na emancipação da nação em 1822 e situando, ao mesmo tempo, o partido que era depositário da causa nacional.

Outro equívoco muito comum em que incorreram as análises tradicionais sobre a Guerra dos Emboabas consiste no pecado capital da história – o anacronismo, expresso na tendência a reduzir o evento a uma racionalidade que é a do nosso tempo. Disso resulta a estranha sensação de que tudo parece encadear-se de forma lógica, como se paulistas e emboabas partilhassem da nossa visão de mundo e fossem movidos pelos mesmos valores e anseios. Não há lugar para a surpresa, o estranhamento e tampouco para a história. A naturalização do passado conduz inexoravelmente à supressão da história como diferença, substituindo-a por uma história como obviedade, em que não há questões ou problemas a serem enfrentados.

Outra limitação recorrente nos estudos sobre o tema refletiu-se no recorte temporal e espacial muito restrito, dando lugar a abordagens excessivamente focadas na
Guerra dos Emboabas, sem que se buscasse articulá-la ao contexto mais amplo do Império português ou da própria história dos atores nela envolvidos. Para grande parte dos historiadores, o episódio encerrava-se em si mesmo, numa temporalidade curta e fortuita, surgindo e morrendo como uma flor no deserto.

De todas as considerações anteriores resulta a constatação de que, viciado pelas lutas ideológicas e pelas limitações analíticas, a par com a pobreza documental imposta pelos arquivos, o tema da Guerra dos Emboabas jamais foi explorado como um campo privilegiado para o estudo da cultura política peculiar que floresceu nas Minas, construída na experiência histórica de homens e mulheres que traziam na bagagem concepções, ideias e tradições sobre o universo da política. Evidentemente, semelhante postura metodológica parte de um princípio antropológico, descuidado por muitos, de que um imenso abismo nos separa do passado. Os anos de 1708 e 1709 constituem uma verdadeira “terra estrangeira”, na qual é preciso adentrar com a convicção de que se trata de uma experiência de alteridade. E um dos resultados mais instigantes dessa incursão é a constatação de que o imaginário político que emerge nas Minas ao longo de todo o século XVIII era tributário das ideias e práticas políticas de paulistas e emboabas.

O contexto histórico da chamada Guerra dos Emboabas oferece um observatório privilegiado para uma abordagem dos imaginários centrada nos jogos de oposição e tensão, derrubando por terra uma noção excessivamente consensual das ideias e práticas políticas. Em vez de uma mera disputa por terras e riquezas minerais, a Guerra dos Emboabas foi, sobretudo, um conflito entre práticas e concepções políticas de paulistas e forasteiros, as quais, provenientes de experiências históricas diferentes, desembocariam em fins do século XVII no cenário explosivo das Minas. Mais do que o campo de batalha, os imaginários ofereceram a arena de luta em que ambas as facções digladiaram-se, buscando legitimar suas reivindicações à luz de suas próprias formulações políticas.

Tradição insurgente

Voltar aos anos de 1708 e 1709 significa reencontrar o momento em que afloram as matrizes da tradição insurgente – e também a não insurgente – que despontaria aqui e ali em todo o Setecentos mineiro. Daí os riscos de uma visão microscópica em que as Minas esgotem o horizonte da análise, em vez da perspectiva da América portuguesa, em primeiro plano, e a do Império português, em segundo. Afinal, foram muitas as conexões que articulavam um levante localizado nos sertões distantes e inacessíveis da América ao contexto do império. Os estudos anteriores ignoraram, por exemplo,
que a destituição de governadores e autoridades locais e a eleição de outros haviam se tornado, logo depois da Restauração de 1640, uma prática comum nos quatro cantos do império e que a eleição de Manuel Nunes Viana inseria-se assim no contexto de disseminação das concepções e práticas políticas do Portugal restaurado.

A reformulação da problemática relativa à Guerra dos Emboabas, renovada pelas contribuições recentes da história cultural e sobretudo da história política, dribla, por sua vez, o velho problema das fontes. Infelizmente, o corpus documental dos velhos historiadores continua a ser, em linhas gerais, o único conjunto de evidências diretamente relacionado com a Guerra dos Emboabas. Surpreendentemente, sobretudo se comparado à Guerra dos Mascates, ocorrida pouco depois, o levante emboaba foi muito mal documentado: não há registros precisos, por exemplo, sobre as batalhas e confrontos entre paulistas e emboabas e a condução do governo emboaba. Tampouco existem relatos sobre a versão paulista – que pode ser rastreada apenas em fontes indiretas.

O silêncio dos arquivos pode ser explicado pelo fato de que, na primeira década do século XVIII, Minas estava muito longe de ser uma civilização da palavra escrita – ou
civiltà da lettera bollata, como o era a Europa da época. O precário aparato institucional – que punha tudo nas mãos do guarda-mor – parecia funcionar sobretudo no plano da oralidade: era por meio da palavra falada que se resolviam os conflitos e disputas e se procediam à repartição e distribuição das datas minerais. Menos que um burocrata, o guarda-mor era, principalmente, um conciliador.

Presença do nativismo

Escoimada dos velhos debates ideológicos, a Guerra dos Emboabas reassume seu verdadeiro lugar na história mineira, subvertendo as abordagens tradicionais orientadas para o sentido nativista de seus protagonistas. O conceito de nativismo, tão caro à velha historiografia aferrada ao mito da independência, traduzia a convicção mais profunda sobre a existência de uma contradição irreconciliável entre a colônia e a metrópole, originada fosse pelo estatuto fosse pelo exclusivo colonial. Mas, afinal, o que as fontes permitem afirmar acerca do caráter nativista do movimento? Se entendermos o nativismo como expressão de amor à pátria, o conceito não se aplica aos emboabas, que eram, por definição, forasteiros, homens recém-chegados à zona mineradora, provenientes da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, de Portugal e outros países europeus. Essa massa de imigrantes, comparada por Antonil com as tribos de Israel que perambulavam pelo deserto de um lado para o outro, estabeleceu-se ali a partir de 1695, há cerca de 12 anos do levante emboaba, e, em 1705, atinge a cifra vertiginosa de 50 mil indivíduos. A terra que encontraram nos sertões de Cataguases era muito diferente da “terra prometida” dos hebreus: lugar áspero, hostil, desprovido de mantimentos, povoado por tribos de índios bravios e animais ferozes, que em pouco tempo tornou-se o cenário de fomes terríveis, que custariam a vida de muitos.

Seriam então os paulistas os campeões da causa nativista? Descobridores da região, eles vinham percorrendo-a desde meados do século XVII, em suas andanças pelos sertões em busca de índios. Em suas reivindicações dirigidas à Coroa, alegavam o direito de conquista, que constituía o cerne da justificação ideológica com que defendiam as suas aspirações na região mineradora. O direito de conquista, corrente no vocabulário político do antigo regime português, assentava-se na ideia de que os conquistadores mereciam um tratamento privilegiado por parte da Coroa, porque eram os únicos responsáveis por um feito alcançado à custa do seu sangue, vidas e fazendas. Dessa forma, grande parte das reivindicações por terras baseava-se na ideia de que os requerentes haviam sido os responsáveis pela colonização da região, desbaratando tribos de índios selvagens e promovendo a povoação nas terras deles conquistadas, com gastos da fazenda.

A alegação de um direito de conquista, ligado ao pedido de sesmarias e à obtenção de certos privilégios, era uma prática bastante comum entre as gentes da América portuguesa. Aos paulistas, importava transformar os serviços prestados à Coroa na empresa dos descobrimentos em mercês que lhes garantissem o domínio político sobre a região: isso era, afinal, o que pleiteavam, quando exigiam o monopólio das terras, cargos, postos e patentes militares. Quando chamados para destruir Palmares, no século anterior, os paulistas também se bateram por essas mesmas recompensas, o que evidencia uma concepção muito peculiar da relevância dos serviços prestados à Coroa e do pagamento que consideravam justo. Tanto em Palmares quanto em Minas, parece impossível imputar aos paulistas o sentimento de amor à pátria – que, de resto, não cultivavam nem mesmo à vila de São Paulo, pois que viviam em busca de novas terras, onde quer que fossem, para ali se instalarem com a família e agregados.

Dimensões trágicas?

A construção historiográfica da Guerra dos Emboabas – com sua cronologia particular, suas causas e seu sentido mais profundo – merece uma ampla revisão, para que se redimensione o evento no contexto das lutas coloniais, escoimando-a dos lugares-comuns que se cristalizaram ao longo do tempo, por obra tanto dos cronistas coevos quanto dos relatos historiográficos. Exemplo desses lugares-comuns é a ideia, disseminada em grande parte dos estudos, segundo a qual o conflito teria assumido dimensões trágicas, revestindo-se de um caráter sangrento – do qual o Capão da Traição seria a epítome – e resultando na morte de milhares de indivíduos. Nada mais equivocado. Aliás, é significativo o fato de que, nas narrativas escritas ainda no século XVIII, o conflito tenha sido descrito apenas como um levante dos emboabas contra os paulistas – e não como uma guerra propriamente dita.

É somente no século XIX que a expressão “guerra civil” começa a ganhar terreno, especialmente sob a pena de Varnhagen, cuja obra se tornaria depois uma referência aos estudiosos do assunto. É bem verdade que Varnhagen pouca importância deu ao conflito, originário da “cobiça dos dois partidos”, cujos “pretextos foram tão fúteis que nem devem merecer lugar na história”. Por essa razão, reservou pouco mais de uma página ao episódio. Em fins do século XIX, a expressão “guerra civil” já estava
plenamente sedimentada entre os historiadores, ao mesmo tempo que o episódio assumia um tom dramático e sangrento, a exemplo do que escreve Xavier da Veiga, que se refere à “longa e sanguinolenta contenda entre paulistas e os denominados emboabas”, a “forças tão numerosas” e ao “objetivo de extermínio”. Para a incipiente historiografia mineira, representada por Diogo de Vasconcelos, a ocorrência de uma guerra de proporções grandiosas no alvorecer das Minas conferia uma dimensão romântica à história mineira, aproximando-a dos grandes impérios da Antiguidade, nascidos também sob o signo de Marte.

Assim, o que para alguns contemporâneos sequer chegara a configurar um conflito perdeu pouco a pouco a sua terminologia original, para dar lugar a outras que, relacionadas à ideia de guerra, acabaram por lhe conferir uma nova natureza. Parece, portanto legítimo afirmar que o levante emboaba prestou-se a uma série de apropriações ideológicas, filiadas tanto ao nativismo histórico – em sua busca pelas raízes da nação independente – quanto ao mito da mineiridade, principalmente a exaltação de uma vocação republicana, representada sobretudo por Tiradentes. Como toda efeméride auspiciosa, os 300 anos da Guerra dos Emboabas constituem um evento importante que merece ser celebrado. E não faltam razões para fazê-lo. Porém, a data deve se prestar a uma reflexão crítica sobre as sucessivas apropriações que se fizeram do passado, situando-as nos debates ideológicos que o contaminaram e que acabaram por lhe distorcer o sentido mais profundo. Mais que simplesmente comemorar, é preciso antes rememorar.

Adriana Romeiro é professora associada do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de três livros, entre eles o Dicionário
Histórico das Minas Gerais: período colonial (em coautoria com Angela Vianna Botelho). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a circulação de manuscritos políticos em Minas Gerais no século XVIII.

fonte: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/ensaio01_2009.pdf

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