segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Capitania de São Vicente (São Paulo) e as Bandeiras.



Com a fundação da Vila de São Vicente em 1532 e a introdução da produção açucareira pouco depois, as guerras entre grupos indígenas passaram a produzir um número crescente de braços para a nascente economia colonial. No final da década de 1540, segundo um relato da época, existiam três mil escravos índios no litoral vicentino, ocupados nos seis engenhos e nas outras propriedades dos europeus.

As expedições para o sertão começam no século XVI e só perdem força e sentido na segunda metade do século XVIII.


 A palavra sertão já aparece discretamente na carta de Pero Vaz de Caminha, como referência a um vasto e desconhecido interior. Com o tempo, o termo passou a representar mais do que uma simples referência geográfica, também demarcando um espaço simbólico. A distinção entre o povoado e o sertão marcava o contraste entre dois universos, um ordenado pela religião católica e pelas leis do Reino, o outro pautado pela ausência da ordem: “sem fé, nem lei, nem rei”, como rezava o ditado da época. Nesse mesmo período, começaram a ser conhecidas as suas riquezas: madeiras, minérios e, sobretudo, populações indígenas. Graças às alianças com esses grupos, os europeus puderam ocupar efetivamente diferentes pontos do litoral e, no caso excepcional de Piratininga (São Paulo), no interior do continente.

A semente do sertanismo estava inscrita em alianças em dois sentidos importantes. Primeiro, as lideranças indígenas buscavam aliados portugueses para aumentar seu prestígio e seu poder de fogo em guerras contra outros grupos, que envolviam expedições para capturar inimigos e perpetuar a vingança. Em segundo lugar, as uniões entre portugueses e índias produziram filhos mestiços, os chamados mamelucos. Muitos destes se valeram de suas raízes nativas e de suas habilidades lingüísticas para se tornarem sertanistas especializados, alimentando a crescente demanda de seus parentes brancos por escravos. Já as filhas mestiças se casaram com portugueses, dando início a genealogias que instalavam uma “nobreza da terra” ao mesmo tempo em que apagavam o passado indígena. Na Capitania de São Vicente, a principal aliança deste tipo se deu por meio da relação entre o náufrago português João Ramalho e Mbcy (ou Bartira), filha do chefe tupi Tibiriçá.

No entanto, havia um entrave que impedia o florescimento pleno de um sistema escravista baseado na mão-de-obra indígena. Os missionários jesuítas, que chegaram ao Brasil em 1549 e a São Vicente em 1553, entraram em competição direta com os sertanistas ao direcionar os índios “descidos” do sertão para aldeias missionárias. Eles pressionaram a Coroa para proibir o cativeiro injusto dos índios. A “Lei sobre a Liberdade dos Gentios”, de 1570, estabeleceu um dos fundamentos da política indigenista portuguesa, declarando livres todos os índios, salvo aqueles sujeitos à “Guerra Justa” – grupos inimigos que apresentavam alguma resistência armada.

Outros fatores dificultavam a escravidão dos índios. O contato com os europeus trazia doenças contagiosas que encontravam neles um “solo virgem”, devido à falta de resistência imunológica. Uma gripe podia causar a morte de muitos, e doenças graves, como a varíola, tiveram um impacto ainda mais fulminante. Em algumas partes da América portuguesa, estas dificuldades favoreceram o crescimento do tráfico transatlântico de escravos africanos. Mas também estimularam a intensificação das expedições para o sertão, em busca de novos cativos para substituir as vítimas das epidemias. 

Na Capitania de São Vicente, com o apoio das autoridades locais, os colonos começaram a organizar expedições de maior porte para adquirir cativos. Os primeiros grandes empreendimentos, nas décadas de 1580 e 1590, tomaram a forma de “Guerras Justas”. Outras expedições, que partiam para o sertão com o pretexto de buscar metais preciosos, regressavam a São Paulo com números cada vez maiores de índios capturados. As expedições de bandeirantes organizadas por particulares eram conhecidas como Bandeiras. As organizadas pelo governo eram conhecidas como Entradas. Tinham geralmente como ponto de partida as cidades de São Vicente e São Paulo. Caminhavam seguindo o curso dos rios, criando trilhas e muitas vezes seus pontos de apoio se transformaram posteriormente em cidades. Quando era possível, utilizavam a navegação das bacias hidrográficas. Lembrando que o interior do Brasil no Período Colonial era formado na sua maior parte por florestas densas e úmidas, inexploradas e conhecidas apenas pelos índios.

Apesar do romantismo e heroísmo apresentado pela história brasileira, a realidade vivenciada pelos bandeirantes era precária.

 Andavam descalços, as roupas em farrapos, e era comum sofrerem de fome, doenças e ataques de animas selvagens e índios hostis. Essa dureza das expedições tornava os bandeirantes homens extremamente violentos, ambiciosos e rudes, características muito utilizadas para a escravização de índios e combate aos quilombos.

No início do século XVII, as expedições tornaram-se mais freqüentes e assumiram explicitamente o projeto de abastecer as propriedades rurais com a força do trabalho indígena. Entre 1600 e 1641, as populações carijós (guarani) localizadas no sul e no sudoeste de São Paulo foram as mais visadas. De língua e cultura muito semelhantes às dos índios tupis do planalto, os carijós passaram a constituir a maioria da população colonial na região de São Paulo nesse período. As expedições ganharam feições paramilitares, ao arrepio da lei e a despeito da voz de protesto entoada pelos jesuítas. Este movimento chegou ao seu auge nas décadas de 1620 e 1630, com as grandes bandeiras sob o comando de Manuel Preto, Antônio Raposo Tavares, André Fernandes e Fernão Dias Paes, para citar apenas os maiores. Estas expedições destruíram as reduções jesuíticas de Guairá (no atual Paraná), causaram grandes estragos nas missões do Tape (no atual Rio Grande do Sul) e criaram um novo momento de tensões envolvendo paulistas, jesuítas e a Coroa.

Armados pelos jesuítas, os índios das missões do Tape derrotaram duas grandes expedições de apresamento em batalhas decisivas, primeiro em Caaçapaguaçu (1638) e depois em Mbororé (1641). Enquanto isso, em São Paulo, os colonos venciam outra batalha: a luta pelo controle dos índios espalhados entre as propriedades particulares. Expulsaram os jesuítas em 1640 e negociaram com a Coroa o direito de explorar a mão-de-obra indígena que lhes custou tanto sangue e suor para obter. Esta postura foi resumida por um jesuíta português que visitou São Paulo em 1700: “Estavam tão firmes os moradores daquela Vila em que os índios eram cativos que ainda que o Padre Eterno viesse do céu com um Cristo crucificado nas mãos a pregar-lhes que eram livres os índios, o não haviam de crer”. É nos testamentos dos próprios moradores que se vê com mais clareza a posição assumida. Em 1684, o casal Antônio Domingues e Isabel Fernandes declarava que os índios que possuíam “são livres pelas leis do Reino e só pelo uso e costume da terra são de serviços obrigatórios”.

A derrota para os índios no sul não significou o fim das expedições de apresamento. Pelo contrário; apesar de diminuírem em tamanho médio, aumentaram em número, freqüência e distância percorrida. A maioria operava em escala pequena, seja na forma de empreendimentos familiares, seja por meio de contratos entre “armadores” e sertanistas. Os armadores forneciam correntes, pólvora e índios sertanistas com a expectativa de receber metade do “lucro” da expedição, isto é, metade dos índios trazidos do sertão.

Um dos resultados destas mudanças foi o aumento na diversidade étnica e lingüística da população subordinada. Essa diversidade também denunciava as dificuldades que os sertanistas enfrentavam. Agora eles percorriam sertões mais distantes e menos conhecidos, trazendo quantidades cada vez menores de cativos. Outro resultado evidente foi a diminuição da população indígena nas propriedades paulistas. Os inventários do século XVII mostram que a posse média atingia quase quarenta índios por proprietário em meados do século, um número que despencou para menos de dez no início do século XVIII.

A realidade: a brutalidade, fome e ganância em um ambiente hostil. (foto: Pintura de Debret)

Ainda assim, os índios eram uma presença constante em todas as propriedades que deixaram algum vestígio documental do século XVII. Vários inventários arrolam posses superiores a cem índios, o que levou o historiador Sérgio Buarque de Holanda a observar a situação paradoxal da “grande propriedade, pequena lavoura”.

Como explicar a necessidade de tantos índios numa área colonial periférica, à margem da economia do Atlântico? 

Para muitos autores, os paulistas aprisionavam índios para vender aos setores mais dinâmicos da Colônia, como as zonas açucareiras do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. A documentação, no entanto, aponta para outra versão. A mão-de-obra indígena certamente mostrava-se indispensável na lavoura paulista que abastecia uma parte da América portuguesa. Mas os índios também colaboraram em todas as etapas da ocupação de terras por europeus. Limpavam os caminhos, abriam as roças, construíam as casas e as igrejas, transportavam bens e pessoas, participavam das expedições para o sertão. Proporcionavam uma força de trabalho e uma força militar. Este segundo aspecto tinha um sentido prático nas disputas entre facções que tanto marcaram a história colonial, mas também se revestia de sentido simbólico, pois os paulistas comandavam a atenção das autoridades nos dois lados do Atlântico. Sua imagem era contraditória. Rebeldes e insubordinados para uns, leais vassalos para outros.

Na segunda metade do século XVII, a Coroa procurou explorar estes laços de vassalagem ao convocar alguns paulistas “potentados em arcos” para combater indígenas e africanos rebeldes, sobretudo nas capitanias da Bahia, de Pernambuco e Rio Grande. Animados com a perspectiva de aumentar o número de escravos, vários paulistas concordaram em participar destas campanhas. Mas as guerras no Recôncavo, no Rio São Francisco e no Açu remeteram poucos cativos a São Paulo. E até mesmo os sertanistas deixaram de voltar para suas terras de origem, buscando aproveitar as grandes dotações de terras que receberam pelos serviços prestados. Na análise pioneira do historiador Capistrano de Abreu, passaram de despovoadores a povoadores.

O sertanismo de apresamento já estava com seus dias contados. O golpe mais forte veio com as grandes descobertas do ouro, entre 1693 e 1722, justamente em lugares freqüentados havia décadas pelas expedições de bandeirantes. Graças às essas expedições, as primeiras regiões ricas em ouro foram descobertas no final do século XVII. A primeira descoberta de ouro nas proximidades do Rio das Velhas, local onde hoje estão as cidades mineiras de Caeté e Sabará. Pouco tempo depois, outras regiões próximas formaram o maior centro de exploração de ouro no Brasil.

A descoberta do ouro em pouco tempo estimulou as autoridades portuguesas a terem mais controle sobre a colônia e elas entraram em conflito com os colonos paulistas pelo monopólio sobre a mineração: a Guerra dos Emboabas. Ao longo do século XVIII, a exploração do ouro representou a principal fonte de renda de Portugal.

Os paulistas ainda tiveram um papel importante na relação com as populações indígenas, foram responsáveis pela descoberta de ouro e pedras preciosas nas regiões de Mato Grosso e Goiás.

A história de São Paulo no século XVII se confunde com a história dos povos indígenas. Por isso, convém reconhecer que os índios não se limitaram ao papel de tábula rasa dos missionários ou vítimas passivas dos colonizadores. Foram participantes ativos e conscientes de uma história que foi pouco generosa com eles.


Saiba mais - Bibliografia:

Abreu, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.
Alencastro, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Cortesão, Jaime. Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958.
Franco, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil: Séculos XVI, XVII, XVIII. 2ª ed. Belo Horizonte e São Paulo: Itatiaia e Edusp, 1989.
Holanda, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CARVALHO FRANCO, Francisco de Assis, Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil, Editora Itatiaia Limitada - Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
MONTEIRO, John. Negros da Terra. Índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo, no séc.XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/sangue-nativo

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